Por Hugo de Brito Machado Segundo
Tripulação, portas em automático...”
Poucos sabem, mas quando o comandante de um avião prestes a decolar no exterior rumo ao Brasil pronuncia essa frase, a companhia aérea envia à Receita Federal uma relação de todos os passageiros embarcados, com as informações sobre a bagagem despachada e seu peso. Na sequência, esses dados são cruzados pelo Fisco brasileiro com informações da declaração do Imposto de Renda de cada passageiro residente no país, seus gastos com cartão de crédito, histórico de viagens anteriores etc., a fim de que se selecionem aqueles que pela alfândega deverão ser inspecionados.
Quando o viajante passa pelo canal do “nada a declarar”, os principais aeroportos do país já dispõem de câmeras e de um avançado sistema de reconhecimento facial que indicam ao agente alfandegário quem deverá ter suas malas fiscalizadas. Algo semelhante ocorre nos portos, nos quais um sistema de machine learning intitulado Sisam (sistema de seleção aduaneira por aprendizado de máquina) indica ao auditor, com base no histórico de importações (do mesmo importador, de outras empresas do mesmo setor etc.), quais declarações de importação têm maior probabilidade de conter erros e quanto (em valores) esses erros podem representar de perda para o Fisco, a fim de que se faça em relação a elas uma fiscalização mais detalhada. Nos dois casos, em vez de fiscalizar contribuintes de forma puramente aleatória, inspecionam-se aqueles com maior probabilidade de estarem cometendo infrações.
No âmbito da Procuradoria da Fazenda Nacional, seguindo a mesma ideia, existe um sistema intitulado “PGFN Analytics”, o qual fornece aos procuradores as probabilidades de êxito de uma execução fiscal (baseado, por exemplo, em dados referentes a bens em nome do contribuinte a ser executado), indicando se deve ser ajuizada ou não. Pode-se citar, ainda, o emprego mais comum (e talvez mais conhecido) da tecnologia no âmbito da fiscalização tributária dos contribuintes em geral, que se faz por meio do cruzamento das informações constantes de todas as declarações de bens e rendimentos, e demais informações prestadas ao Fisco, por pessoas físicas ou jurídicas. Tais dados dão à Fazenda a possibilidade de descobrir irregularidades e iniciar fiscalizações, bem como realizar autuações.
Esses são apenas alguns exemplos do que a administração tributária brasileira tem feito com o uso da inteligência artificial (AI), tanto no plano federal como no de alguns estados e municípios, situando-a entre as mais avançadas do mundo. Em todas essas situações, a tecnologia confere à autoridade tributária maior eficiência, permitindo que se consigam melhores resultados com menor esforço
.Mas será que os algoritmos, quando usados pela administração tributária, se devem prestar apenas à eficiência e à comodidade de seus servidores? Não que tais objetivos não devam ser perseguidos, mas não existiriam outros? A confirmar as afirmações de Harari, em seu 21 lições para o século XXI, o emprego que adquirirá maior importância, com o avanço da inteligência artificial, será provavelmente o do filósofo. Taxistas, ascensoristas, bancários e até advogados podem ter empregos ameaçados por computadores no futuro (ou mesmo já no presente), mas os que pensam na razão de ser e na finalidade das coisas, não. As máquinas podem executar algumas tarefas com eficiência maior que a dos humanos, mas ainda está distante, se é que chegará, o dia em que pensarão melhor do que nós por que e para que desempenhar essas tarefas. O uso da IA pelo Fisco, assim, ainda que um dia possa tirar o emprego de fiscais, advogados e contadores, enquanto meros meios, não se poderá afastar da discussão relativa aos fins do Direito Tributário, a serem perseguidos por quem (ou “o que”) o estiver aplicando.
Exemplificando, os sistemas de fiscalização devem apenas indicar erros cometidos por contribuintes que levam ao pagamento a menor de tributo? Se um contribuinte erra e paga quantia superior à devida, deve a máquina ficar em silêncio ou chamar a atenção do contribuinte e da autoridade para a possibilidade de restituição? Caso a máquina disponha de informações que levem ao atendimento de um pedido feito por contribuinte, deve usar tais informações para deferi-lo, ainda que o contribuinte não as tenha juntado em seu pedido? Ou deve condicionar o atendimento do pedido à juntada de cópia autenticada e com firma reconhecida de um documento que espelha informação da qual o Fisco até já dispõe, ou da qual não duvida? No extremo, infelizmente real: mesmo pedidos reconhecidamente procedentes podem ser denegados porque “o sistema” não permite seu atendimento? A resposta, óbvia, é a de que se deve aplicar a lei mesmo que isso leve a uma menor arrecadação ou à restituição do que houver sido arrecadado de maneira indevida, e quem programa os sistemas informatizados do Fisco deve ter isso em mente. Por essa razão, a estrutura de tais algoritmos, e os critérios por eles utilizados, devem ser públicos, para que se possa realizar o controle de sua legalidade.
A Receita Federal pode eventualmente se opor a essa publicização, alegando, por exemplo, que antes do uso de tais sistemas os auditores das alfândegas poderiam parar quem quisessem, e que o conhecimento dos critérios poderia levar contribuintes a encontrar caminhos para burlar o algoritmo e não serem parados ou fiscalizados. O argumento, contudo, é de procedência apenas aparente, pois, como adverte Cathy O’Neil (Weapons of Math Destruction – How Big Data Increases Inequality and Threatens Democracy), essa publicização é a única forma de controlar possíveis abusos no uso dos algoritmos e evitar que discriminem e levem a distorções na aplicação da lei. Se vão cada vez mais influenciar e controlar nossas vidas, inclusive pautando a atuação do poder público, tais sistemas não podem ser caixas-pretas guiadas por critérios sigilosos.
Finalmente, nessa ordem de ideias, o avanço da inteligência artificial em matéria tributária bem poderia levar — as autoridades fazendárias e legislativas deveriam pensar nisso com atenção — a um ressurgimento do lançamento de ofício como meio ordinário de acertamento da relação tributária.
Nos últimos 50 anos, a maior parte dos tributos passou a ser objeto de lançamento por homologação, assim entendido aquele no qual o sujeito passivo tem todo o trabalho de apuração do tributo devido, cabendo-lhe declarar a quantia assim apurada e pagá-la antecipadamente, sem a prévia manifestação da autoridade competente (CTN, artigo 150). Nos cinco anos subsequentes, a autoridade pode examinar essa atividade e o que em face dela tiver sido pago, homologando-a, de forma expressa ou tácita, ou lançar de ofício, com a imposição de penalidades, eventuais diferenças.
Houve uma transferência imensa de trabalho (nada menos que 2600 horas anuais em 2016, de acordo com o Banco Mundial, em oposição a uma média de 200 horas anuais nos demais países — clique aqui), das autoridades fazendárias para os contribuintes e seus auxiliares, sobretudo contadores, com um agravante: no caso de erro, aplicam-se pesadas multas ao contribuinte. Chega a ser engraçado ensinar, aos alunos de graduação, que o lançamento é atividade privativa da autoridade administrativa (CTN, artigo 142), e, ao mesmo tempo, que na prática quase toda a atividade de apuração é feita pelos próprios contribuintes e depois apenas homologada tacitamente pelo Fisco (em virtude da decadência do direito de lançar de ofício eventuais diferenças).
Nesse contexto, e sabendo-se que hoje o Fisco conhece praticamente em tempo real toda a movimentação contábil do contribuinte, por meio do “SPED”, seria o caso de resgatar a normalidade do lançamento de ofício: por meio do cruzamento de dados fornecidos, o Fisco calcularia o tributo devido e notificaria o contribuinte para pagá-lo ou questioná-lo, no caso de discordância. Parte da responsabilidade por eventuais erros voltaria a ser assumida pelas autoridades fazendárias, com o emprego da tecnologia em favor da simplificação e da segurança jurídica.
Em síntese, o uso da inteligência artificial deve estar em sintonia com a finalidade do Direito Tributário, a ser por tais sistemas aplicado. Sua finalidade não é tão somente a de propiciar arrecadação ao poder público, a qual historicamente acontece com, sem ou mesmo contra o Direito. Aliás, é o tributo que tem por fim propiciar arrecadação. O Direito Tributário, composto ou veiculado por normas pré-estabelecidas que limitam a cobrança dos tributos, não; este último é historicamente muito mais recente, tendo sido o responsável pelo surgimento de nada menos que constituições rígidas nas quais se acham consagradas figuras como Estado de Direito, separação de poderes e catálogos de direitos fundamentais.
É difícil apontar uma revolução que tenha contribuído para trazer à humanidade essas importantes instituições e que não tenha decorrido de conflitos tributários. Nesse contexto, o uso de algoritmos pelo Fisco deveria conduzir a um salto para o futuro, servindo por igual à preservação e à realização dos direitos dos contribuintes, e não a um passado pré-moderno em que tudo o que interessava aos coletores de impostos era a mais cômoda forma de satisfazer os cofres reais.
Hugo de Brito Machado Segundo é doutor e mestre em Direito, advogado e professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará. Membro do Instituto Cearense de Estudos Tributários (Icet) e da World Complexity Science Academy (WCSA) e visiting scholar da Wirtschaftsuniversität (Viena, Áustria).
Revista Consultor Jurídico, 13 de fevereiro de 2019, 8h00
Fonte: https://www.conjur.com.br/2019-fev-13/consultor-tributario-inteligencia-artificial-tributacao-quem-algoritmos-servir?utm_source=akna&utm_medium=email&utm_campaign=Press+Clipping+FENACON+-+14+de+fevereiro+de+2019+%26amp%3B%23128232%3B